E
era como num conto da literatura fantástica. Em poucos segundos deixa-se lá
embaixo toda a beleza pasteurizada de carros importados e cenários de novelas
burguesas. Sobe-se rápido, via escada ou elevador. Num piscar de olhos já é possível
enxergar – na mesma altura – coberturas com suas piscinas típicas de uma cidade
tropical e amontoados urbanos no concreto nu, desafiando a gravidade, alicerces
incrustados nas pedras.
“Por
aqui é assim, meu irmão. Do morro pro asfalto, não existe movimento contrário”,
me dizia um senhor, sobrevivente da falta de saneamento básico, que apesar das
dores sobe e desce escadas todos os dias, e enxerga na paisagem exuberante da
cidade um motivo apenas para manter-se feliz em estar ali. Paisagem esta que é
o único sinal de democracia, de bem coletivo.
As
cidades são organismos vivos, aparelhos que fazem parte do nosso dia-a-dia, que
se tornam parte de quem somos. Não conseguimos nos desvencilhar dos emaranhados
urbanos; nos dias atuais, arriscaria dizer que os complexos “urbanóides”
constituem o que há de mais humano. As ruas são veias abertas, avenidas, artérias, e tudo pulsa numa cadência única enquanto cruzamos os sinais e abrimos caminho para a fumaça e a pressa.
Talvez
por isso, apenas o peregrino consiga enxergar as dicotomias com um olhar,
digamos, mais perplexo, sem o cotidiano corrido e o olhar no relógio e nos
aparelhos modernos de comunicação. Como já disse, dali do alto era possível
enxergar a democratização da beleza que se vê, mas infelizmente, a desigualdade
em relação ao local a partir do qual se vê tal paisagem – pode ser um
condomínio de luxo, ou então uma laje quente qualquer.
Dizem
que por lá existem agora unidades pacificadoras – mais um elemento digno de
contos fantásticos, que tem seus méritos, é claro. Funcionam como torres de
vigia, expulsando qualquer tentativa de organização paralela. São de fato
necessárias, ao menos até que algo realmente seja feito.
Partir
do real, da dureza do dia-a-dia de quem precisa descer até “o asfalto” para
buscar um medicamento qualquer na farmácia. Chegar ao insólito, às paisagens, o
contexto de guerra instaurado nas alturas – nem todas as elevações permitem a
entrada de tanques.
Nenhum
lugar é tão paradoxal; em geral o que é diferente, o que é questionável, sempre
se estabelece além das muralhas dos condomínios e clausuras burguesas. É uma
maneira de colocar cada um no seu devido lugar, separados, marginalizados. Mas ali tudo é diferente, existe um espaço
geográfico propício para que as maiores desigualdades sejam visíveis a olho nu
e convivam no mesmo local, de modo que não se misturam, assim como água e óleo.
Talvez
lá de baixo não consigam enxergar as miudezas das vielas e a dureza de cada
degrau que leva tantos à violência no alto dos morros. As balas são muitas
vezes o único vestígio, um grito, talvez.
Mas
o que o peregrino vê ali tem ainda mais relação com o fantástico justamente por
se tratar de dois mundos separados por uma simples elevação. Talvez por isso
histórias de amor entre pessoas do asfalto e do morro soem como um “Romeu e
Julieta” contemporâneo.
Não
há uma mistura aparente. Não há uma ligação íntima visível. As cores se diferem:
ao nível do mar estão os brancos bem nascidos e aos negros sobraram as
montanhas cheias de labirintos.
Não
que não tenha conhecimento da desigualdade social. Mas é que naquela cidade, ao
olhar para cima, eu não vejo apenas o céu, vejo a injustiça cometida por nós
mesmos amontoada, desafiando a gravidade, mas, certamente, passando
despercebida para os olhares viciados dos moradores daquele lugar.
É
preciso construir cidadania e dar condições favoráveis para que as famílias
amontoadas nos morros possam ter um futuro. É isso é algo que vai além dos
castelinhos construídos pela polícia pacificadora. “Paz” vai além de ausência
de tiros – é um conceito muito amplo, que exige outros esforços.
A loucura
dos morros preenchidos por concreto precisa de soluções dignas do realismo
fantástico. É preciso devolver a dignidade àqueles que escalam as pedras para
chegar a suas casas. É preciso partir de vez para o insólito que já permeia a
história da cidade maravilhosa, afinal, tudo ali é desafiador, não usual. É
preciso mudança, transformação, e este é o momento para isso.
Morro
do Cantagalo, Rio de Janeiro, novembro de 2011.